quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

O espelho de Odone

Marcavam vinte e duas horas, conferi no pulso. Decidi que era tarde. Fui ao balcão da lancheria e gritei pela conta. Como se a conta não viesse prendi uma nota de vinte sob o cinzeiro de vidro e corri para fora. A noite era aprazível, mas quando ventava tornava-se quase insuportável. O ar era quente e estranho. Meados de junho e o frio sequer chegara. Notava que as estações do ano já não nos serviam como indicadores de nada; houve no último verão dias frios, neste inverno sobravam os dias quentes. A rua estava cheia de gente. Homens e mulheres espalhavam-se nos postes, encostavam-se em muros, reuniam-se em rodas e bebiam; alguns cachorros erravam por sobre as calçadas, atravessavam despreocupadamente as ruas, não temiam os carros ou qualquer outro perigo iminente; pensei ser difícil caminhar por entre uma multidão de bêbados: nunca se sabe para onde vão se deslocar, e quando se movimentam o fazem inesperadamente, de modo abrupto, podem nos acertar. Optei por caminhar na rua, próximo ao meio-fio; havia menos carros do que gente e os carros não me pareciam alucinados.

Ao cruzar a frente de um mercado, que servia de bar depois do horário comercial, vi que Odone estava estirado sobre o balcão. Mantinha-se erguido graças ao balcão que lhe servia de encosto, e bravejava, com os braços, qualquer coisa contra o garçom. Conheci Odone num dia de um antigo verão, em que o calor ainda preponderava na estação. Eu estudava numa grande instituição universitária, estava no último semestre da faculdade e contava 22 anos; sonhava ainda com uma carreira exemplar. Desde lá passaram-se doze anos e não entendo como uma carreira possa ser exemplar... A aula recém começara e houve um arranca-rabo brabo entre o professor e um aluno. Miguel, o aluno, não percebera que a aula havia iniciado e concorria com o professor em tom e intensidade de voz. ‘Não percebeu que aula começou?’, disse o professor para o aluno. Miguel, ainda sem saber do alerta, soltou uma gargalhada imensa ao colega sentado a seu lado, com quem se ocupava. Uma gargalhada que ofuscou a advertência do professor o obrigando a reproduzi-la, agora num som quase gutural, mais calmo, intenso e colérico que o utilizado pela primeira vez. Senhor, respondia Miguel ainda com um sorriso pastoso no rosto, sugiro que antes de começar a aula avise que estás para começá-la. Sugiro que não assista mais às minhas aulas, revidou, agora com mais suavidade e de modo consciencioso, o professor. Ah, suspirou alto Miguel, agora sou eu o culpado pelo senhor falar baixo e não ocupar a atenção da turma? O rosto do professor se transtornou e seus olhos ganharam uma escuridão e um peso terríveis. Sua expressão já seria suficiente para que o aluno fustigado se retirasse, mas, mesmo assim, caminhou para Miguel agarrou-lhe a orelha com violência e o arrastou para fora da sala de aula, sem dizer mais palavra. O aluno, em cujo rosto contorcido estampava-se terror, jamais retornou à sala e evitou, qual um alcoólatra que em tratamento evita outros que bebem, qualquer proximidade com o professor. O professor era Odone, como já se deve prever.

Entrei no bar e sentei-me ao balcão. Como em muitos bares voava fumaça sobre a cabeça dos clientes. Havia um som ambiente que não pude distinguir. As vozes preenchiam todos os cantos do recinto, altas e surdas. Pedi ao balconista um chope que me foi servido instantaneamente, com muito colarinho dentro e fora do copo. O balconista puxou o pano que trazia sobre o ombro e enxugou o excesso de espuma que derramava do copo. Em poucos segundos me foi trazido um guardanapo que amparou o copo e preparou o trago definitivamente. Sequei o copo em dois ou três goles, sem olhar para Odone, que se calara por alguns instantes, ainda debruçado sobre o balcão. Pedi por outro copo. E outro. Depois de três copos me senti melhor para abordá-lo.

- Nada bem, meu amigo – disse-lhe. Ergueu os olhos para mim, mas não pode reconhecer-me. Ele bebia uísque misturado com alguma coisa, talvez fosse apenas o gelo transformado em água, ou algo parecido. Voltou os olhos para o copo e secou-lhe sem muita dificuldade. Levantou como se algo esquecido, de grande importância e urgência, voltasse-lhe à cabeça. Recuou do balcão em marcha à ré e saiu sem pagar a conta, o que me fez entender que era um cliente antigo e que em breve retornaria ao bar para acertar o que pendurava. Preocupou-me o estado em que Odone estava: mal se mantinha em pé. Pedi por uma última lata de cerveja, paguei a conta com meus últimos trocados e o segui, cuidando para não ser visto. Odone, de cabeça baixa e mole, subia os degraus que levavam até a entrada de seu edifício, sem olhar para o caminho, sem ver nada, automática e predestinadamente. Algum porteiro lhe segurava a porta com bastante solicitude. Um sujeito baixo e risonho que vestia uma camisa de manga curta azul, própria da profissão, que a usava aberta quase que até o umbigo sobre uma regata branca. O sujeito fechou a porta, tirou um rádio de um bolso e um maço de cigarros do outro. Acendeu-o com muita habilidade e sentou-se no muro de uma floreira abarrotada de hortênsias. Sentei-me num banco de onde pude perceber uma luz acender a janela de um apartamento do primeiro andar. Em poucos segundos todo o apartamento iluminou-se e não mais voltou a escurecer; ficou acesso enquanto terminava de enxugar minha lata de cerveja, tempo o bastante para Odone cair no sono, supus.

Não houve meios para ir ao bar nos próximos dias; ocupava-me a correção de alguns textos aos quais não conseguia dedicar-me totalmente, lhes dava meu tempo, mas não minha atenção. Levei esses dias como pude, como que arrastado pela correnteza artificial de uma piscina circular. Interessava-me, sem saber o porquê, o abandono que pude ver estampado no rosto de Odone. Esforcei-me em manter afastada tal preocupação, mas voltava a ela obstinadamente. Uma pergunta concorria por minha atenção: o que me fazia atentar para o caso daquele sujeito? Que se danasse Odone! Um cara arruinado por quem não me importava em nada. Não achei resposta alguma.

Passaram-se duas semanas. Finalizava a correção de um texto longo, um texto mal escrito que não precisava de uma correção, precisava ser reescrito. Eram cinco da tarde, havia tempo para corrigir mais um texto, desde que fosse curto. Depois preocuparia-me com o jantar. Examinei a pilha de impressos que aguardavam minha correção. Textos diversos sobre política, culinária, futebol. Eu trabalhava como uma espécie de corretor para um folhetim que se distribuía gratuitamente para a comunidade local. Nunca houve alguém que se encarregasse de meu trabalho antes de tê-lo assumido; fui contratado como estagiário para um cargo inexistente em cuja mesa aglomeravam-se pilhas de textos mal escritos, inacabados e preguiçosos. Folhei alguns dos textos, mas não consegui ânimo para dar-lhes nenhuma energia sequer. Deixei sobre eles um peso de vidro e saí, prepararia o jantar na volta.

Ainda não havia escurecido definitivamente quando entrei no bar em que havia encontrado Odone. Um casal sentado à entrada do recinto repartia um prato de algo que um dia foi um filé com fritas. Dois homens sentaram-se na mesa mais ao fundo do bar e bebiam qualquer trago forte e escuro em copos largos e vazios, como os utilizados para se beber uísque. Odone estava no balcão. Conversava eloqüente e bastante sóbrio com um senhor corpulento e de rosto inexpressivo que beirava os cinqüenta anos. Mas somente ele falava, sem dar tempo para réplica. Bebia animadamente algo translúcido, com gelo, que me pareceu vodka. O senhor corpulento tentou acompanha-lhe no ritmo do trago, mas vi que seu copo estava bem mais cheio que o de Odone. Sentei num banco distante que se escondia atrás do caixa e das torneiras de chope. Pedi por uma cerveja. Odone percebeu quando sentei. Reconheceu-me já que voltou o olhar para mim pelo menos mais duas vezes enquanto falava com o senhor, que permanecia inexpressivo como uma parede branca. Escutei quando Odone pediu por outros dois drinques, e acho que escutei o senhor cancelar o que devia ser seu - já estava tarde, pareceu argumentar. O garçom dispôs um guardanapo e serviu ao lado somente um copo. Duas pedras de gelo, duas doses generosas de vodka e um pouco de água tônica encheram um copo comprido. Enquanto o garçom servia o trago com agilidade o senhor levantou-se um tanto atrapalhado, sacou do bolso uma nota de cinco, entregou-a ao garçom e despediu-se de Odone, sem cordialidade e sem olhá-lo nos olhos, com certa repulsa no tratamento. Quando ficou sozinho Odone balançou a cabeça e disse algo ao garçom, que lhe servia de cúmplice com um risinho descompromissado no rosto.

- Pois então, meu caro, - dirigia-se agora a mim sem olhar-me diretamente, como se conversasse com o garçom - sente-se comigo. - Empurrou o copo que o senhor deixara pela metade arrumando-me o lugar ao seu lado. Olhei-o para certificar-me do convite. Apanhei meu copo e sentei-me ao seu lado, mas não no lado que havia me preparado. Fitou-me os olhos como se tivéssemos conversado no dia anterior.
– Preocupou-se comigo, então? Foi conferir se eu chegava direitinho em casa?
– Como? - perguntei-lhe.
- Soube pelo porteiro que degustaste tua cerveja em frente ao meu prédio enquanto eu cambaleava até o apartamento.
- Custei a acreditar que estavas acabado, precisei de tempo para comprovar. Mas na verdade estava atrás de ar fresco, nada mais.
- Acompanha todos os acabados até suas casas? Faz trabalho comunitário?
- Poderia continuar lhe dizendo que somente é acabado aquele que um dia foi algo, o que eliminaria boa parte do universo de acabados que imaginas haver, mas prefiro encerrar com o tema. Pare com essa bobagem e diga-me, como tem andado, de fato?
- Estou bem, como pode ver. Curo a depressão no fundo do copo, como qualquer um que entenda ser este o único meio para se tratar de males verdadeiros. – Mantinha no rosto um sorriso ignóbil que em qualquer momento transformar-se-ia em algo mais próximo da desgraça mantida oculta atrás do rosto; que se estampava na luz dos olhos e que se identificaria facilmente por qualquer um que lhe olhasse a expressão.
- Continua lecionando? Ainda leciona? – fui obrigado a repetir a pergunta como que para tirá-lo do torpor ao qual a conversa lhe atraíra. Ele escapou do transe sacudindo a cabeça levemente, voltando para conversa.
- Abandonei todas as tarefas administrativas que me ocupavam demais. Estou com bastante tempo livre. Dedico-me agora a coisas de maior importância.
- Como bater ponto numa espelunca como esta. Uma pena para ti.
- Qualquer um pode fazer-se diretor, ou chefe: é uma questão de ter saco e de consentir com aquilo que lhe mandam. – falava com desenvoltura, mas sem estar seguro de si, preferi desviar o tom da conversa.
- De qualquer forma continuas em sala de aula?
- Envolvi-me com uma aluna e fui demitido, perdi o emprego. Até que me agüentei bem, não acha? – forçava uma espécie de alegria, de conformidade no rosto, como se nunca tivessem lhe permitido alternativa que não a demissão. Falei sem pensar, bastante surpreso com a notícia:
- E sua esposa?
- A coisa toda não demorou a chegar aos ouvidos dela. No início dizia a ela ter sido demitido por cortes no quadro docente... – hesitou por alguns segundos a remexer algo sob as unhas, suas mãos estavam nervosas e incertas - Mas a verdade é que eu queria a Marina, dezenove aninhos, uma flor... Minha esposa alugou um apartamento e deixou-me assim que soube da menina. Levou uma mala e mais nada. Não me atendia sequer os telefonemas. Fiquei com tudo – disse rápida e animadamente, como se assim pudesse falsear a verdade ocultando-a por sob um frágil véu de contentamento, tal como uma criança faz ao dizer, com os olhos rasos d’água, que o tombo não doeu.

- E a menina?

Pediu por outro trago enquanto ajeitava-se no banco. Seus olhos caíam à medida que a bebida lhe ocupava a consciência. Tornavam-se mais opacos e cinzas a cada gole. Poder-se-ia dizer que o rosto de Odone estava afundado e sem vida, e que sua amargura aumentava com a minha presença. Quando a dor nos ataca sozinhos falta-nos referência para sopesar seus efeitos sobre nós, enganamo-nos facilmente quando sós; servem-nos os outros, neste caso, como espelhos em que enxergamos as cicatrizes de nossa angústia, as marcas de nossa consternação. Somos capazes de viver anos solitários açoitados por uma grande tristeza sem verter lágrimas, e quando nos encontramos ocasionalmente com alguém que nos é conhecido, basta um cumprimento para que desabemos aos pés de nosso interlocutor.

- Vivo com ela. – Algo parecia remoer-lhe as entranhas. Enxugou o copo num só gole, que rolou pela goela sem respirar. E enquanto apanhava o casaco sobre o pequeno encosto do banco disse-me sem consultar o relógio: estou atrasado, fiquei de entregar algo a ela antes que saísse para a aula. Vamos comigo até meu apartamento, já conheces o caminho, e desta vez convido-te para beber algo lá dentro.
- Na verdade estou sem tempo, - disse com que pudesse evitar o convite. Pousou sua mão fina e pálida em minhas costas, empurrando-me sem fazer força, apenas sinalizando-me o caminho para fora. Indicou com um gesto ao garçom que minha bebida seria inclusa em sua conta. Fez tudo de forma a não deixar-me alternativa. Tampouco me pareceu indesejoso acompanhá-lo. Tomei mais um gole e deixei meu copo pela metade.

Na rua alguns lampejos de vento lembravam-nos o inverno. Mas prevalecia, estranhamente, uma brisa morna que vestia os pedestres com casacos finos e leves. Caminhamos lado a lado. Seu edifício ficava a duas quadras do bar. Atravessamos um centro comercial que se preparava para fechar as portas. Mantinham-se abertas pela metade, somente para que os últimos funcionários pudessem sair. Havia sorrisos espalhados pela rua. O fim do expediente e o frio que ameaçava chegar provocavam certa euforia. Odone mantinha o mesmo rosto, se bem que mais iluminado e ambíguo.

O porteiro esperava-nos com a porta aberta. Não o percebi abrindo a porta, era a mesma posição da última vez que o vi, o que me fez inventar ser ele uma estátua, não fosse por nos dizer boa noite. Subimos as escadas com certa agitação, como se algo incrível nos esperasse. O apartamento estava quieto, poder-se-ia dizer que ninguém o habitava. Sala e cozinha conjugadas e algumas portas que deveriam ser escritório, quarto e banheiro, todas fechadas. Sobre o balcão que separava cozinha e sala alguns copos usados, uma bandeja com guardanapos e uma tigela praticamente cheia de biscoitos. Odone pareceu contrafeito por não encontrar a menina em casa. Grunhiu algo entre os dentes e conferiu em meu rosto minha esperteza em reconhecer-lhe o malogro. Como se não o afetasse minha impressão correu para uma das portas, levando-me com um gesto estranho e destrambelhado. Abriu a porta abruptamente, como se a coiceasse. Estavam sentados à margem da cama Marina e um rapaz bastante moço, muito próximos e íntimos, grudados um no outro. Eles sorriam carinhosa e sensualmente quando foram surpreendidos. A cama estava arrumada, mas o lençol marcava a silhueta de corpos que ali se deitaram sem se cobrir. Os dois olharam-no com admiração. Enquanto o menino transformava o rosto arregalando cada vez mais os olhos assustados Marina saltou da cama e vociferou contra Odone.

- Isso é jeito de se entrar? Quase nos mata de susto, seu louco. Não se tem mais privacidade alguma por aqui?! – a menina não conseguia sequer falar corretamente, tal era sua fúria e explosão. Olhava Odone de cima a baixo, cheia de desprezo e aversão.
- Calma querida, não sabia que estava em casa. Vim lhe entregar o dinheiro, estava preocupado.
- Pois me dê o dinheiro. E por favor, não me pregue mais peças como essa, quase morri de susto. – Ela se levantava e arrastava consigo, pela mão, o menino. O rapaz procurou despedir-se com o olhar, mas não houve tempo, em poucos instantes estavam fora.

A porta bateu com força, deixou-nos sós no apartamento, eu, Odone e um silêncio envergonhado. Odone procurou dizer-me algo, mas não conseguiu formular frase alguma. Entendi que a surpresa não lhe fora grande como a minha. Ele entendia o tamanho de minha surpresa e tentava a ela explicar algo. Ficamos alguns segundos em pé, desconfortáveis e ausentes: ambos relíamos a cena e demorávamos a retornar para o presente. Como se eu precisasse dizer algo, propus.

- Meu caro, disse procurando um relógio, preciso mesmo ir embora. Tenho coisas pendentes a fazer e preciso estar sóbrio, se é que me entendes. – disse sem dar-lhe opção de resposta.
- Ok, claro. Encontraremo-nos por aí, não é mesmo? – disse-me atônito, sem olhar-me os olhos.

Na entrada do edifício, do lado de dentro, pude ver o porteiro e sua porta aberta. Esperava-me ele de costas, como se antecipasse minha saída. Saí sem cumprimentá-lo para não deixar testemunhas de minha visita. Preferi não jantar. Tomei um copo d’água e desisti de qualquer correção naquela noite; retomaria o trabalho ao acordar, depois de preparar um café forte e de comer algum sanduíche.

Retornei ao bar algumas vezes depois, mas não mais encontrei meu antigo professor por lá. Não sabia ao certo se queria vê-lo, mas mesmo assim algo forçava-me ir a seu encontro. Fui até a frente do seu edifício e sentei-me no antigo banco. Vi que as luzes estavam acessas em todas as janelas do apartamento de Odone. Pensei que lá dentro ele chorava, que estava sozinho e que assim preferiria ficar.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Tempo em vão

A sala em que passava os dias era escura, mas a certo momento do dia a posição do sol encontrava, com exatidão, uma única fenda talhada na junção hermética das paredes. Inundava sua cama de um tom ocre, de calor e traço delicado. Revelava nela os bolores e o mofo que a escuridão e a umidade construíam com paciência. O verão se anunciava através de um vapor morno e adocicado que soprava de uma tela de ventilação instalada na parte mais baixa de uma das paredes. Procurava adivinhar nos odores daquele breu os percursos, os quartos, e a distância percorrida antes de bater em sua pele. E predizia também o verão, que lhe consentia o cálculo dos dias, a corrida do tempo, a iminência da morte. Quando cessava o verão e interrompia-se o movimento daquela periódica respiração, instaurava-se o início de outra era, que às vezes durava mais, outras vezes menos, mas que encerrava-se, via de regra, com a notícia do próximo verão. Não havia sorriso, disfarce ou desespero. As lágrimas lhe vinham como a fome, mas não saberia distinguir uma da outra - brotavam do tempo, cujo criador jamais soube precisar. E assim terminou os dias.

Pobre do homem, único dos animais destituído de instinto, se algo nele não for trabalhosamente construído, o que dele será?

sábado, 29 de setembro de 2007

Lágrima 2

Frequentemente recordava do dia que amargou sua vida.
Encontrou com ela inesperadamente. Já havia percorrido todos os espaços possíveis e, ao entrar no último que faltava, por pouco não esbarrou no rosto que saía taciturno ao seu encontro. Lembrou-se algum tempo depois do olhar baixo e distante que se estampava em Sabrina, havia um plano em exercício. A inclinação do rosto e a respiração nervosa da moça já prenunciavam a tristeza que o dia lhe reservava. Mas não foi capaz de acreditar na suspeita que alterava abruptamente o ritmo comum do encontro. Beijaram-se rapidamente. - Está linda. – tu também estás... gostaria de conversar noutro lugar. Vamos a minha casa.

Lembrava-se de ter enterrado o rosto na carne da mão e de nela apoiar as lágrimas. Desejava mantê-las ocultas se possível, mas seu esforço trabalhava em vão. Pouco pode lhe dizer, não lhe saía a voz. O terror de não mais vê-la, de não tê-la nos braços à noite, de ter que inventar uma vida alheia a dela, lhe arrancava o ar e lhe deixava o coração arrebentado. E lhe enganava a razão; não se fixava a nenhum pensamento – corriam eles desconexos numa marcha disforme que lhe desesperava. Cravou os dedos nas têmporas como que para estancar a corrente de lágrimas que lhe vertiam dos olhos, da garganta, do peito. Na verdade, mesmo que se lhe fosse disponível a voz, não saberia o que lhe dizer. Que dizer quando se não há mais como minorar a ferida, quando se conhece apenas a treva de um poço do qual não se enxerga o topo? Quis afastar-se da compaixão que se desenhava em Sabrina. Nela não se formava choro algum, mas ao contrário, poder-se-ia adivinhar em seu rosto certa benevolência que fazia crispar-lhe os cantos da boca. Levantou com esforço a cabeça e verificou quê sentimentos estavam nela. Entendeu que ela nada poderia fazer, que de nada adiantaria ver forjarem-se lágrimas em consideração à tragédia de Martins. Sentiu-se grato a ela, apesar de tudo. Precisava sair e levar consigo o que lhe restava. Não lhe podia ser pior, não conseguiria permanecer um instante sequer ali. Levantou-se sem dirigir-lhe o olhar. Engasgou. Tremeram-lhe as pernas, mas ainda assim arrastou-se. Entorpecido. Com dificuldade girou a chave, golpeou a maçaneta, e fechou a porta atrás de si, cuidadosamente, como o preocupasse batê-la com força; como fosse aquele um dia qualquer.

O levantar do dia estragava o humor de Sabrina. Somente deixava o quarto pela manhã quando uma obrigação se lhe impunha. Levantar cedo lhe era difícil e aborrecido. Dizia-se feia ao acordar e que sua beleza se desenvolvia ao longo do dia, mas nunca antes do fim da aurora. Naquela manhã, em que o sol se esforçava em amarelar os jardins ainda úmidos pela noite, não fora diferente. Olheiras fundas e negras turvavam seu rosto ainda adormecido, quase lhe desfiguravam. Lastimou-se por ter esquecido o óculos de sol em casa – indispensáveis pela manhã. Preocupava-se em ser vista longe de sua melhor forma. Disfarçou as bolsas que lhe amparavam os olhos com o cabelo: única ferramenta que lhe veio à tona. Uma franja rubra e espessa tentou dissuadir os olhos de seu inchaço – mas lhe fazia também crescer a fronte deixando-a em proeminência. Seus cabelos estavam descuidados, mas eram belos e fortes: colocavam-na em destaque independente da forma como estivessem dispostos de sua cabeça; olhares atraídos a acompanhavam para vê-los dançar. A desenvoltura do cabelo era o que lhe restava de natural em meio a tanta simulação.

Ao identificá-la vindo de longe pensou se a menina conhecia e dominava as faculdades de suas madeixas. As conhece, sem dúvida, mas não sabe como delas fazer uso: deixa pender sobre o rosto uma só mexa que lhe destrói a simetria e o equilíbrio do passo. Atrapalha-se.

Sabia andar em desalinho naquele instante, mas não pode controlar-se. Fixou com o olhar a curva de um galho que invadia o corredor da escola e desmanchava-se contra a parede: enchia de vida o grisalho descuidado do prédio. Adotou o plano para não parecer mais desconfortável do que estava. Teve a sensação de medir dois metros – era um gigante avançando por entre o labirinto da escola. Percebeu que seu rosto entortava-se à medida que dele se aproximava (tenho um olhar estranho). Mas já nada podia fazer – ele já tinha decidido que seu olhar ficaria sobre o dela e sabia do esforço dela para não deixar os dois olhares se encontrarem. Martins guardou com distinção o momento em que reconheceu a mulher de sua vida.

Jamais imaginou ela que seu andar desengonçado pouco afetava a impressão que causava no rapaz. Martins ocupava-se de outros traços e não daqueles que em vão tentava ela forjar. O que o atraiu para a moça era indecifrável, desconhecido e mudo, não conseguiria descrevê-lo mesmo depois do abandono que lhe aniquilou. Algo que lhe ocupou completamente; não houve nele espaço vago para qualquer outro empreendimento, para qualquer outra aventura cujo fim não fosse conquistar Sabrina, tê-la como sua. Quando nos resta somente uma alternativa a ela nos doamos inteiramente e é difícil acabar derrotado já que a ela dedicamos todas nossas forças. Mas logo soube que aquilo que lhe atraiu a ela lhe fazia mal. E continuou fazendo mesmo depois de tê-la conquistado. Não há amor sem que haja sofrer, quando este é leve e aprazível, aquele é frágil e insatisfeito; quando é forte e arrasador, aquele é tenso e é um vício.

O amor que ali descobria lhe revelou outras cores nos dias que viriam. Rememorava febrilmente do tempo em que esteve com ela. Tempo de dias inquietos, mas também fartos, coléricos e deliciosos. Tempo que contaminou para sempre a pureza dos dias que ainda lhe restavam. Tempo de cujos dias não se arrependera. Tempo onde jamais reconhecera a natureza do material que lhe alimentava com tanta força a saudade; e desta nunca pode se desvencilhar.

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Outro dia raso

Outro dia raso. Esqueceu de verificar o horário ao acordar: pouco lhe importava as horas, mas percebeu que era cedo, o céu ainda estava cinza e o vento gelado. Debruçou-se sobre o parapeito da janela e observou o movimento do início do dia. Um carro da polícia atraía um grupo de pessoas que transformava o cenário corriqueiro. Divisou uma cabeça deitada de lado que caía de uma fenda da aglomeração.
- Pobre homem, fora atropelado.
O caso lhe agitava a manhã, lha deixava estranha e ligeiramente agradável. O acidente atrapalhava o trânsito que aos pouco ganhava um volume incomum de carros. Dos carros mais distantes começaram a gritar algumas buzinas; não sabiam elas que um corpo jazia estirado mais a frente. O grupo de pessoas permanecia imóvel contornando o acidentado.
- O que desejariam elas... Entretenimento. - Reconheceu o soar distante de uma sirene; uma ambulância corria de longe. - Estes desocupados deviam abrir espaço para que se prestassem os primeiros-socorros – ocorreu-lhe. Subiu-lhe ligeiramente o sangue, pensou em gritar algo aos que atrapalhavam o socorro da vítima, mas acalmou-se, estava distante demais para se fazer ouvir, preferiu afastar-se, fechar a janela, a manhã era fria.

Fitou as paredes do apartamento. Uma a uma, sem ânimo, automaticamente. Alguns móveis e objetos desalinhados, sem brilho, davam ao aposento um aspecto abandonado. Pensou em dedicar parte do dia à arrumação do quarto, mas desistiu logo da idéia. Quando se permite a alguém qualquer possibilidade acaba o indivíduo por não fazer nada já que qualquer escolha tende a encurtar o leque de alternativas oferecido. Foi até sua mesa de trabalho; sem sentar, com a poupa das mãos apoiadas sobre a superfície da mesa, os braços esticados e os ombros alongados para frente, organizou mentalmente sua manhã de estudos: adivinhou onde se encontravam os livros de que necessitaria, conferiu a carga da caneta, definiu a seqüência daquilo que estudaria, mas tratou de desviar a atenção, ainda não era hora de ali se reter. Batia-lhe alguma angústia. Suspirou fundo e foi até a cozinha preparar algo. O hábito se encarregaria de organizar as coisas, de acalmar-lhe o dia; a idéia lhe trouxe conforto. Encheu a chaleira d’água. Serviu-se de duas fatias de pão e preparou o café. Comeu em pé. Olhou com certa repugnância os pratos empilhados na prateleira, havia descaso na arrumação da louça; alguns guardanapos empoeirados e amassados dividiam em desalinho os pratos maiores dos menores, os pratos escapavam do eixo, cada qual para um lado, como se quisessem saltar para fora. Um raio espesso de luz irrompeu contra a poltrona desviando-lhe a atenção. Inundada de sol era ela o espaço mais quente da casa: convidava-lhe a leitura. Acabou por reordenar a seqüência do dia. Deixou a mesa à espera: teria tempo mais tarde. Acomodou-se na poltrona, inclinou-se para a direita de forma a aproveitar o calor que rompia a penumbra do apartamento; escolheu um livro que havia recebido na véspera, uma nova edição de uma obra já conhecida - interessava-se em analisar as alterações de uma edição para outra. Alguém na porta, duas batidas de tal forma abafadas pelo burburinho da rua que tiveram que se repetir para que se confirmassem. A camareira lhe trazia uma carta. Desconfiou imediatamente de seu conteúdo. Voltou para a poltrona, mas o conteúdo que a carta trazia não lhe permitiu aproveitar o prazer que o sol insinuara.

Poucas linhas destruíam o projeto dos últimos seis meses. Demorou alguns instantes para alcançar o que lhe legava a mensagem. Não havia mais motivo algum para continuar: a editora que o havia contratado não mais precisaria de seu livro. Um livro cuja história lhe exigira, seis meses antes, uma difícil rescisão. Renunciou então a seus planos de vida e passara a viver distante, noutra cidade. Na época tal decisão parecia por fim à dura rotina que construíra com a esposa, ao tormento que lhe era conviver com as desgraças de sua família, ao trabalho tortuoso e execrável que mantinha por conveniência, parecia salvar-lhe. Durante as primeiras semanas distante da mulher percebera o equívoco que cometera. Como lhe foi difícil estar afastado dela. Desde sua decisão tampouco havia meios para retornar. Abandonara a esposa, suas novas responsabilidades não deixavam espaço para ela: fechou as portas do passado e sobre ele depositou pedras irremovíveis. Certo dia um telefonema botava fim a relação: sua então esposa dizia estar apaixonada por outro, por alguém que não permitiu a ela sequer chorar a falta do marido, alguém que agora lha ocupava inteiramente. Ela fora intensa e sincera, também nada podia fazer para poupá-lo da dor. Melhor assim, pensava irremediavelmente, teria sido terrível receber clemência da mulher que ele próprio abandonou.

Já nas primeiras semanas de sua campanha os dias tornaram-se duros e longos. A produção de seu texto lhe era um exercício custoso, débil, revelava-se gradativamente um produto frágil e vazio. Agarrou-se à rotina, enfermeira habilidosa, e a ela confiou o terror dos dias. Não obstante esta carta agora lhe jogava no chão, num solo liso e escuro, sem apoios com que contar. Olhou seu rosto no espelho e sorriu aturdido. Deu passos firmes até o telefone, levantou o gancho e procurou a esposa. No primeiro soluço do telefone desligou. Voltou para a mesa, apanhou sua carteira e arrancou o casaco que cobria o encosto da cadeira vestindo-se enquanto já ganhava a rua.

O frio já não o incomodava, embora fosse responsável pelo movimento escasso de pedestres que preferiram o calor de suas casas ao frio que uivava ali fora. Não lhe corria lágrima alguma, mas algo lhe engasgava e atrapalhava seguidamente a respiração. Aspirava com muita força o ar gelado do dia. Sentia a garganta seca e fria, enquanto que as pernas aqueciam-se em passadas nervosas. Avançava por entre as quadras, percorreu um, dois bairros, até que não pode mais caminhar. Adivinhou um boteco ao lado de uma pequena oficina mecânica – uma pequena placa com letras descascadas lhe confirmava. As mesas estavam vagas, dois funcionários, sem pressa alguma, faziam a limpeza da noite anterior. Sentou-se próximo do balcão, numa mesa para duas pessoas, e chamou por alguém. Trouxeram-lhe uma lata de cerveja. Tragou de um gole. Os primeiros clientes chegaram ao boteco quando o relógio já marcava doze horas. O lugar rapidamente ficou cheio, mas ele permaneceu indiferente à multidão. Ocorria-lhe um universo de reflexões, todas breves, informes, desconectadas, jamais poderia fazer-lhes uso. Acabou atendo-se, sem saber por que, às que lhe traziam, qual um analgésico virtuoso, o sorriso e o perdão da esposa. Agarrou-se à imagem da mulher e, apoiado nela, voltou para casa.

O dia levantara definitivamente; o ar era diferente daquele que o alimentou quando saía, pela manhã, porta a fora: o vento acalmava-se em brisa, o frio intenso tornara-se morno. E as idéias pareciam se encontrar umas às outras, transformavam-se em planos. Diziam-lhe elas que o retorno lhe era a única opção, que não havia nisso embaraço algum, que um homem erra, perde a cabeça, e que a dignidade está em se defender aquilo que se ama, haja o que houver. Quase em frente ao seu prédio, um edifício amarelado, de cujas janelas caíam espessas tranças de samambaias, de diversas tonalidades de verde e amarelo, resolveu: descansar e partir ao amanhecer. Enquanto atravessa a rua e descobria a presença de outros matizes destacando-se das madeixas das plantas um carro lhe apanhou violentamente as pernas. Girou duas vezes antes de se desmantelar próximo ao meio fio. Alguns gritos vinham borrar o silêncio. Um grupo de pessoas lhe rodeava, um carro da polícia se aproximou, uma ambulância gritava de longe. Imaginou que estaria atrapalhando o trânsito, mas não pode se mover. Faz frio ali fora, pensei.

sexta-feira, 6 de julho de 2007

O pedido do marido

Sorriu de modo imperceptível ao lhe ver sentado. Descalçava as luvas e as dispunha sobre o aparador de forma que servissem elas de berço onde pudesse acomodar o anel que ao final do dia lhe estrangulava o dedo inchado. Este hábito lhe era corriqueiro e repetia-se sempre que chegava em casa. Na porta lateral, que ligava a sala ao escritório, a governanta aguardava que fosse liberada, esforçando-se em compor uma expressão que indicasse não ser ela a responsável pela entrada da visita. Para que pudesse desviar os olhos e ocultar assim a surpresa que seu rosto tomara consentiu a retirada da empregada com um ligeiro olhar. Enquanto sentava-se ordenou que não fosse perturbada.

- pois bem... o que deseja? - argüiu com a respiração ofegante causada pela emoção que lhe subia e esquentava a garganta. Cabisbaixo, Jonas levantou-se e, com as mãos moles unidas em súplica, pôs-se a falar.

- Entenda que somente vim lhe procurar por não me restar alternativa. - Seus olhos estavam cheios, mas o que lhe sensibilizava não eram as lembranças do matrimônio, e sim o terror do fracasso de sua empreitada. Arregaçou uma das mangas e procurou gravidade para as suas palavras: - Estou sem recurso algum, querida. Não quero lhe expor às desgraças que me têm acompanhado, mas lhe garanto que não conseguirei manter-me um mês sequer... Marta está gravemente enferma. Dizem que não passará de duas semanas. Os médicos recusam-se ao tratamento caso eu não lhes adiante parte do pagamento. Estou desesperado e somente a ti posso recorrer, meu amor. Entenda minha desgraça e diga-me que vai ajudar com algum dinheiro. Não lhe peço muito, somente o suficiente para quitar as despesas com o tratamento e garantir o aluguel até o fim dos dias de Marta.

Jonas assegurava, apesar de tudo, a elegância do traje e das maneiras. Enquanto acomodava-se em um sofá mais próximo ao da poltrona ocupada por Matilde tratou de soltar um dos botões do paletó, como para lhe garantir o ar e a calma necessários para tratar do assunto com lucidez, mas também para lhe permitir uma postura que acreditava lhe cair bem. Jonas esteve casado com Matilde por seis anos. Sua desenvoltura, a fluência de sua fala, seu andar gracioso e embusteiro, o porte que ostentou na juventude, e que ainda preservava qualquer coisa de conquistador, fizeram com que Matilde se apaixonasse pelo então rapaz. Já nos primeiros anos de matrimônio a desconfiança dela sobre o marido fora despontando e, à medida que os dias sucediam-se, poucas dúvidas restavam à esposa sobre as traições do outro. Jonas já mantinha relações habituais com uma das empregadas da casa quando Matilde, sem lhe comunicar a descoberta, expulsou a menina. O marido envolveu-se ainda, durante os últimos anos de casado, com um sem número de mulheres, mas o casal parecia compactuar da infidelidade do marido e sobre ela nada falar.

Certo dia Matilde encontrou uma carta em que Jonas dizia estar saindo de casa e que passaria a viver com Marta, única sobrinha de Matilde. Por muitas vezes Matilde procurou Jonas a fim de lhe dar espaço para retratações, para que pudesse o marido abandonar a amante e regressar a casa, para que recuperasse ela, por fim, a única chance de viver. Contudo, mostrou-se insensível aos apelos da esposa e pediu, ainda, que não fosse mais procurado, já que a insistência causava indisposição e embaraço à Marta e que não havia meios para que prosperasse. Passaram, enfim, dois anos sem se encontrar, período da vida de Matilde cujos dias foram manchados de manhãs doloridas e de noites desgraçadas.

Após o apelo de Jonas, cuja expressão armada interrogava a ex-esposa sobre sua decisão, Matilde manteve os olhos firmes, arcados, duros... entorpecidos. Não havia mais lágrimas em seus olhos, mas sobrava-lhes sofrimento. Ocupou-lhe a mente uma infinidade de emoções, de planos, de amargura; pelo seu corpo corriam fluxos de peso, calor e velocidade desconhecidos; estava tomada de dor, não acreditava guardar forças para manter-se firme. No entanto, não pode dar corpo às suas proposições, e, com os olhos vidrados sobre o rosto vitimado de Jonas, disse: - Arruma as tuas coisas e as de Marta e venham os dois morar em minha casa. – Jonas, tomado de surpresa, não pode sequer fazer uso do conjunto de expressões que havia ensaiado para a cena e, ainda indeciso sobre o sucesso de seu plano, como uma criança obediente, de olhos baixos e agradecidos, beijou as mãos de Matilde e saiu porta a fora.

terça-feira, 3 de julho de 2007

domingo, 1 de julho de 2007

Lágrima

Enquanto caminhava percebia que minhas pernas andavam sozinhas, sem que pudesse eu lhes afetar a vontade. Estavam elas em descompasso. Minha cabeça inclinava-se desequilibrada, como se fosse de areia, pesada, atrapalhava o ritmo acelerado de minha marcha. Era como se não pudesse o raciocínio me convencer de que tal aventura me era assustadora. Não queria jamais me expor outra vez à humilhação. Explodi horrivelmente e agora corro a favor daquilo que jamais mereci. Mas não consigo sequer formar em meu pensamento a presumida ineficácia de meu apelo. Vou encontrá-la e aos pés dela chorar. Procurarei não chorar antes.

Chamei-a pelo sinal da campainha. O primeiro toque, incerto, destoou do segundo, que fiz com o dedo cravado. O barulho que se ouvia fora do apartamento era mais agudo do que o que corria dentro; era também mais alto... vergonhoso. Lá dentro os passos, que demoraram a rugir e que subitamente tornaram-se firmes, revelaram a surpresa, a indecisão e a coragem que precisou ela encontrar para vir até a porta. O corpo do som e o ritmo das batidas da sirene deixavam claro para ela que era eu que lhe batia a porta. Encontrei-a terrivelmente inteira. Já sabia de seu estado, mas preferi achar que estava ela como eu. Ela estava melhor do que jamais estivera. Radiava. Havia em seu rosto uma consternação calculada, imprópria, mas que vinha acomodar-se ao conjunto que formávamos, eu, um arrebentado, e ela, que dissimulava alívio de tristeza. Como a expressão lhe caía bem. Minha presença a piorava. Minha garganta engasgava. Lhe fiz mal durante o tempo que estive ao seu lado. Sempre lhe quis o bem. Como foi que não percebi. Fui subordinado às vontades dela. Foi esse meu engano. Deixei de lado o que mais me importava. Afastei todos de mim. E junto deles agora está ela, longe.

Estava na sua frente e não pude dizer nada. Teria-me sido pior a palavra. Somente esclareceria para ela sobre o que agora para mim tornava-se claro, eu lhe fazia mal. Daria-lhe contento e confiança. Perderia minha última esperança. Fiquei quieto, torci os ombros (minhas pernas escolheriam ficar), e, ainda de cabeça baixa, desci novamente as escadas que separavam a porta do apartamento e o acesso ao edifício. Acabava de subi-las estarrecido e agora as descia, como morto. Caíram de mim lágrimas que somente muito tempo depois deixaram de surgir dos olhos, mas que permanecem apertando o coração.